terça-feira, 12 de julho de 2011

A "legitimação pelo conteúdo da decisão" como subcategoria da "legitimação pelo procedimento


Por Lúcio Delfino

Prestigiadíssima doutrina é esclarecedora ao apontar que a legitimação pelo contraditório vincula-se ao procedimento:
(...) “a legitimação da jurisdição não pode ser alcançada apenas pelo procedimento em contraditório e adequado ao direito material, sendo imprescindível pensar em uma legitimação pelo conteúdo da decisão. É que o contraditório e a adequação legitimam o processo como meio, porém não se prestam a permitir a identificação da decisão ou do resultado do processo, ou melhor, a garantir o ajuste da decisão aos compromissos do juiz com os conteúdos dos direitos fundamentais. O procedimento pode ser aberto à efetiva participação em contraditório e adequado ao procedimento material e, ainda assim, produzir uma decisão descompromissada com o conteúdo substancial das normas constitucionais.” (MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria geral do processo. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 438 - sem grifos no original).
Estou de pleno acordo com Luiz Guilherme Marinoni quando ele esclarece sobre a possibilidade de um procedimento, ainda que aberto ao contraditório, não produzir decisão compromissada com o conteúdo substancial das normas constitucionais. Ou dito de maneira diversa: a participação dialógica das partes no arco procedimental nem sempre implica provimentos jurisdicionais afinados às normas constitucionais. Daí – defende novamente com acerto o mestre – a imprescindibilidade de se pensar uma legitimação pela própria decisão, capaz de assegurar o ajuste do provimento ao conteúdo dos direitos fundamentais materiais.

Entendo, todavia, que o raciocínio merece algum ajuste.

É que não se afigura escorreito tratar da legitimidade pela própria decisão — ou, como prefere o mestre, da legitimidade pelo conteúdo da decisão — como categoria alheia ao procedimento. A legitimidade pela própria decisão traduz-se, isso sim, em subcategoria, inserta dentro daquela maior, denominada legitimidade pelo devido processo (ou legitimidade pelo procedimento).

Autorizar o juiz a se amparar numa legitimidade alheia ao procedimento, acomodando, ele próprio e solitariamente, o debate travado pelas partes (=contraditório) ao conteúdo das normas constitucionais, é tão somente endossar a produção de decisões-surpresa, originadas, por assim dizer, de um arranjo mental solipsista que não se submete à indispensável fiscalização das partes. Advogar a existência de uma categoria de legitimidade externa ao devido processo, é simplesmente defender postura antidemocrática (=ilegítima, inconstitucional), sobretudo pelo atentado à concepção de que as decisões públicas hoje são fruto da participação de seus destinatários - o cidadão há de ser concebido como autor e destinatário dos provimentos jurisdicionais (CF/88, art. 1.º, parágrafo único).

A legitimidade pelo conteúdo da decisão defendida como categoria alheia ao devido processo legal afronta, ademais, aquilo que Daniel Mitidiero denomina de dever de consulta, decorrente do princípio da cooperação (MITIDIERO, Daniel. Colaboração no processo civil como prêt-à-porter? Um convite ao diálogo para Lenio Streck. Revista de Processo, São Paulo, n. 194, p. 55-69, 2011). Esse dever exige do órgão judicial instruir-se com as partes antes de decidir qualquer questão, seja ela fática ou jurídica, de modo que elas possam influenciar ativamente no convencimento dele e, deste modo, participarem também do rumo a ser dado ao feito pelo provimento a ser proferido.

Mais ajustada ao paradigma democrático é a lição do Professor Fredie Didier Jr.:

“Há um velho brocardo: iura novit curia (do Direito cuida o juiz). Há outro: da mihi factum dabo tibi ius (dá-me os fatos, que eu te darei o direito). São dois axiomas que devem ser repensados. Primeiro, sabe-se que não é sempre que o juiz conhece o Direito. Às vezes, o juiz não sabe do que se trata a causa, não tem idéia do que se trata (pode ser uma causa que verse sobre direito estrangeiro, por exemplo). Mas ele também não precisa saber, a princípio. Ele ouvirá o que uma vai dizer, ouvirá o que a outra disser e, pela (juris) prudência, decide. Nenhum juiz é obrigado a saber todo o Direito. Da mihi factum dabo tibi ius é expressão que me remete a uma imagem, assim, se me permitem, não muito aprazível. Porque, vejam, não sei se tem uma máquina de Coca-Cola, em que se diz: ‘Joga uma moeda e aperta o botão escolhido’. Da mihi factum é o jogar a moeda; dabo tibi ius é a entrega do refrigerante, sai o ‘direito escolhido’. Não é assim. O processo de constituição de direito é muito mais complexo. Não se opera de forma tão simples. Pode o magistrado decidir com base em um argumento, uma questão jurídica não posta pelas partes no processo? Percebam: o magistrado, por exemplo, verifica que a lei é inconstitucional. Ninguém alegou que a lei é inconstitucional. O autor pediu com base na lei tal, a outra parte disse que não se aplicava a lei. E o juiz entende de outra forma, ainda não aventada pelas partes: ‘Essa lei apontada pelo autor como fundamento do seu pedido é inconstitucional. Portanto, julgo improcedente a demanda.’ Ele pode fazer isso? Claro. O juiz pode aplicar o Direito, trazer, aportar ao processo questões jurídicas. Pode? Pode. Mas pode sem ouvir, antes, as partes? Não. Não pode. O juiz teria, nestas circunstâncias, já que ele trará ao processo fundamento jurídico que não está nos autos, intimar as partes para manifestar-se a respeito. Ele teria que dizer: ‘Intimem-se as partes para se manifestar sobre a constitucionalidade da lei tal’. Tem que fazer isso. Aí pode alguém vir dizer: Está prejulgando? Não, não está prejulgando — até porque pode estar em dúvida sobre o tema, que lhe veio à cabeça quando estava a preparar a sua decisão. Se ele fizer isso, estará sendo leal com as partes. Por que? Porque não pegará as partes de surpresa. Porque, se ele não fizer isso, ele vai reconhecer a inconstitucionalidade na sentença, sem ter dado ao autor a chance de poder tê-lo convencido do contrário: não teve a chance de mostrar ao magistrado que aquela lei era constitucional. E, agora, só com a apelação. Como é que se pode restringir o contraditório ao julgamento do recurso? O recurso confere a oportunidade de nova discussão; e não a primeira discussão. Recurso é para restabelecer o curso e não começar um novo curso, a partir dali, para discutir a questão só agora, no Tribunal. Vamos agravar a situação. Imagine o Tribunal de Justiça decidindo com base em questão jurídica não colocada pelas partes, sem a sua prévia manifestação: só lhes restarão os recursos extraordinário, com todas as dificuldades a eles inerentes. A possibilidade de acontecer isso em tribunal é muito grande, notadamente em razão da praxe forense denominada ‘entrega de memoriais’. Quantas e quantas vezes, os advogados nos memoriais, dão uma ajeitada no processo, uma corrigida, acrescentando um argumento novo, que não estará nos autos porque os memoriais foram entregues em gabinete do magistrado. Parece-me, então, que o magistrado deve determinar a juntada dos memoriais ao processo, com a subsequente intimação da parte contrária para manifestar-se a respeito. (DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil. 6. ed. Salvador: JusPodivm, 2006. v. 1, p. 62-63 – sem grifos no original).
Disso tudo, a conclusão  que se deduz é a seguinte: a legitimidade pelo conteúdo da decisão atrela-se ao devido processo legal. O juiz, só por isso, não está autorizado, fundado em seu exclusivo talante, a elaborar provimentos alheios ao material (fático e jurídico) debatido ao longo do procedimento, ainda que motivado pela imperiosa necessidade de ajustar a decisão ao conteúdo das normas constitucionais. Caso perceba que o debate travado entre as partes não se apresenta suficientemente maduro para garantir o ajuste da decisão ao conteúdo dos direitos fundamentais, deve, exercitando seu dever de consulta – decorrente do princípio da cooperação, repita-se –, incitar as partes e informá-las sobre isso, direcionando e permitindo um debate complementar. Somente depois é que estará legitimado a proferir o provimento jurisdicional.

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