sábado, 9 de julho de 2011

A CEMIG e a tese da competência absoluta do Juiz da Vara da Fazenda Pública e Autarquias de Belo Horizonte para julgar "ações de reparação de danos"


Por Lúcio Delfino

Tenho percebido que muitas contestações formuladas pela Companhia Energética de Minas Gerais (CEMIG), em demandas de reparação de danos instauradas por cidadãos vítimas de uma prestação ineficiente de serviços de energia elétrica, trazem em seu bojo matéria preliminar de incompetência absoluta (ex ratione personae) do juízo cível singular não especializado.

Segundo advoga a CEMIG, cumpriria ao Juiz da Vara da Fazenda Pública e Autarquias de Belo Horizonte tal competência. A tese se alicerça: (i) no art. 4.º, §2.º, da Lei n.º 10.293/1.990; (ii) no art. 59 da Lei de Divisão e Organização Judiciária do Estado de Minas Gerais (LC n.º 59/2001); (iii) no art. 14 da Constituição Mineira; e (iv) no art. 65 da Lei de Organização Judiciária do Estado de Minas Gerais (Lei Complementar n.º 38/95).

A razão, entretanto, não ampara essa construção teórica.

O art. 73, §2.º, da Lei Estadual n.º 7.655/75 (alterado pela Lei Estadual n.º 10.293/1990) estabelece:

“Art. 73 - Na Comarca de Belo Horizonte, as atribuições dos Juízes de Direito são exercidas mediante distribuição, respeitada a separação entre as jurisdições civil, criminal e fiscal.
(...)
§ 2º- Compete, privativamente, a Juiz da Vara da Fazenda Pública e Autarquias processar e julgar causa cível ou execução em que  for  autor  ou  exequente, réu ou  executado,  assistente  ou opoente   o  Estado,  o  Município  e  respectivas  entidades  da administração   indireta,  ressalvada  a   competência   de   foro estabelecida em lei processual.” (Parágrafo com redação dada pelo art. 4º da Lei nº 10293, de 2/10/1990).

O primeiro equívoco da CEMIG é desconsiderar regra elementar em hermenêutica que prega a necessária conjugação dos parágrafos ao que dispõe o caput do artigo. Ou seja, os parágrafos obrigatoriamente se vinculam ao disposto na cabeça do artigo, até como forma de assegurar alguma sistematização e racionalidade na busca de sentidos.

Neste rumo, fácil perceber que o caput do art. 73 refere-se expressamente à “Comarca de Belo Horizonte”, e informa que ali as atribuições dos juízes de direito devem ser exercidas mediante distribuição, respeitada a separação entre as jurisdições civil, criminal e fiscal. Por consequência, os demais parágrafos (oito no total) que lhe são complementares devem ser interpretados em consonância com tal comando legal (contido no caput, repita-se). Vale dizer, todas as competências designadas nos oito parágrafos que seguem o caput dizem respeito exclusivamente à “Comarca de Belo Horizonte”, não se espraiando às demais comarcas que integram o grande Estado de Minas Gerais.

O segundo equívoco robustece o anterior e é fruto de uma exegese truncada. Não bastasse o fato de o art. 73 cingir-se à regulamentação da competência da Comarca de Belo Horizonte (ou seja, limitar-se a atribuir função jurisdicional aos diversos órgãos jurisdicionais da Comarca de Belo Horizonte), não é aceitável ao intérprete ignorar o fato de que tal dispositivo está inserido em legislação estadual (Lei Estadual n.º 7.655/75). Quer isso significar que havendo competência já pré-estabelecida em legislação federal, inadmite-se ao legislador estadual ignorá-la, substituindo a regra anterior por outra que melhor lhe apeteça.

Por serem as regras de competência de natureza procedimental (e não de natureza processual), admite-se, é bem verdade, aos Estados Membros legislarem sobre elas. Todavia, tal competência legislativa dos Estados (e do Distrito Federal) é concorrente com a União (CF/88, art. 24, XI), o que evidencia haver relação de subordinação entre a atuação da última na edição de normas gerais e a atuação dos Estados (e do Distrito Federal) na complementação delas mediante normas específicas. Enfim, as normas específicas editadas pelos Estados (e Distrito Federal) não poderão contrariar as normas gerais elaboradas pela União; o papel das primeiras é o de meramente complementar as derradeiras. (PAULO, Vivente; ALEXANDRINO, Marcelo. Direito Constitucional Descomplicado. 2ª. ed. Niteroi : Editora Impetus, 2008. p. 317).

Ressalte, ademais, que o próprio legislador estadual estava atento a essa circunstância ao redigir o §2.º do art. 73, pois, em sua parte final, encontra-se a seguinte advertência: “... ressalvada a competência de foro estabelecida em lei processual.” Logo, conquanto o legislador estadual tenha criado competência específica ratione personae (norma específica), vê-se que cuidadosamente imprimiu, ao final do §2.º do art. 73 da Lei Estadual n.º 7.655/75, uma ressalva para evitar antinomias com lei federal (normas gerais) que, decerto, comprometeriam sua constitucionalidade.

E efetivamente há norma geral, editada pela União, regrando a competência para julgamentos de casos caracterizados por pedidos ressarcitórios. Assim é que o Código de Processo Civil estabelece a competência do foro do lugar do ato ou fato para a ação de reparação do dano (CPC, art. 100, V, “a”).

É frágil, afinal, o raciocínio desenvolvido pela CEMIG também pelo simples fato de existir norma geral (editada pela União) estabelecendo a competência para o processamento de “ações de responsabilidade civil”, que sequer se choca com a norma específica editada pelo Estado de Minas Gerais (inserta na Lei Estadual n.º 7.655/75), naturalmente pela ressalva que se vê ao final do §2.º do art. 73 (“... ressalvada a competência de foro estabelecida em lei processual”).

Portanto, não é adequado defender a competência absoluta do Juiz da Vara da Fazenda Pública e Autarquias da Comarca de Belo Horizonte, no julgamento de “ações de reparação de danos", às quais tenham por réus o Estado de Minas Gerais, municípios mineiros ou entidades da administração indireta.

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