terça-feira, 12 de julho de 2011

Responsabilidade Civil da Indústria do Tabaco


Por Lúcio Delfino

(O texto retrata palestra proferida no Congresso Internacional “O Poder Judiciário e o controle do tabaco”, ocorrido em Brasília, nos dias 15 e 16 de abril de 2010, no auditório do Superior Tribunal de Justiça)

O tempo é exíguo e o tema, por sua vez, instigante, polêmico. Não há, enfim, como exaurir todas as questões que envolvem a responsabilidade civil da indústria do tabaco em 15 minutos apenas. Por isso optamos por eleger um assunto em específico, a obviedade vinculado intimamente à temática objeto deste painel. E acreditamos que a escolha foi feliz. É que o assunto, ao qual esta palestra é dedicada, retrata um dos argumentos considerados fortes pela própria indústria do tabaco em suas defesas apresentadas em juízo. Referimo-nos à questão da licitude da atividade exercida pelas empresas fumígenas como empecilho a sua responsabilização civil.

É bastante comum ver-se na jurisprudência decisões que se assentam no argumento de que, por ser a atividade de fabrico e comercialização de cigarros lícita (legal), não há que se falar em ilicitude e, por conseguinte, também não há que se falar em responsabilidade civil da indústria do tabaco. O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, por exemplo, em recente julgado, decidiu:
“Não se caracteriza como uma prática ilegal a produção e a comercialização de cigarros, descabendo responsabilização da indústria por doenças eventualmente potencializadas pelo hábito de fumar” (Apelação Cível n.º 70027823426). Também o Tribunal de Justiça de Minas Gerais se manifestou sobre o problema da seguinte maneira: “A responsabilidade dos fabricantes de cigarros em razão dos malefícios advindos com o consumo do produto não pode, por si só, gerar a obrigação indenizatória, eis que o dano, ensejador da indenização, deve ter origem em um ato ilícito, o que não é o caso sub judice, visto que a atividade de fabrico de cigarros trata-se de atividade lícita.” (Apelação Cível n.º 360.841-5).
Tal argumento, sem embargo de aparentemente sedutor, é equivocado, com a devida vênia. De todo modo, vem se intensificando e verdadeiramente impregnando as decisões proferidas pelos nossos tribunais como se fosse lugar-comum, um chavão que, sem dúvida, facilita os julgamentos, mas que, ao mesmo tempo, tira do foco as questões que realmente importam no exame dos casos concretos. O argumento que se procurará combater aqui é, em verdade, falacioso e não suporta uma cognição pouco mais penetrante, isso por se apresentar em descompasso absoluto com o ordenamento jurídico positivado.

Colhe-se das lições sempre citadas de Sérgio Cavalieri Filho serem três os pressupostos necessários à configuração da responsabilidade civil:

i) a conduta, comissiva ou omissiva, violadora de dever jurídico primário (com ou sem culpa, em conformidade com o exigido pela lei);
ii) o dano; e
iii) o nexo de causalidade entre os dois primeiros.

Nesta breve exposição iremos nos concentrar, insista-se na idéia, no primeiro desses requisitos, vale dizer, na conduta, comissiva ou omissiva, violadora de um dever jurídico primário. Em outras palavras, confinaremos nossa análise no ato ilícito e naquilo que é necessário para a sua configuração. Ademais, e também dada a escassez de tempo, manteremos o raciocínio em sintonia apenas com o Código de Defesa do Consumidor, sobretudo na responsabilidade pelo fato do produto, disciplinada em seu art. 12.

Não se nega a legalidade da atividade de fabrico e comercialização de cigarros no País (apesar de ser possível – e racional - a construção de um raciocínio reverso na pós-modernidade, como o faz, por exemplo, Luiz Guilherme Marinoni, em interessante artigo publicado na Revista Brasileira de Direito Processual). Pela leitura do art. 12 do Código de Defesa do Consumidor, fácil perceber que pouco importa tal legalidade – a legalidade da atividade exercida pelo fornecedor – para a configuração de ilícitos nas relações travadas no mercado de consumo. O Código de Defesa do Consumidor, enfim, não motiva a responsabilidade civil fundada no risco da atividade na própria atividade do fornecedor. Bem diferentemente, o fato gerador da responsabilidade civil do fornecedor situa-se na idéia de defeito ou acidente de consumo, mais especificamente naquela imperfeição jurídica contida no próprio produto, motivadora de um acontecimento externo, causador de danos material e/ou moral ao consumidor.

Ora, nada mais óbvio. Afinal, de regra, as atividades exercidas pelos fornecedores de produtos e serviços no mercado de consumo são mesmo lícitas, legítimas. Defender que o ilícito, que enseja o dever de indenizar, deve ser buscado na própria atividade dos fornecedores, seria, simplesmente, imunizar, quase completamente, esses mesmos fornecedores contra tutelas jurisdicionais ressarcitórias voltadas à compensação de consumidores lesados. Tal tese, caso acatada na generalidade, implica situar o consumidor em situação ainda mais desvantajosa (=desigual) que aquela na qual se encontrava quando vigente o Código Civil de 1916 - significa obstar-lhe o direito de obter ressarcimento pelos danos que eventualmente suportar no mercado de consumo. Se o fato gerador do ilícito fosse mesmo a atividade - e não relacionada ao resultado dessa atividade - impossível seria responsabilizar civilmente todos aqueles fornecedores que atuam legitimamente no mercado de consumo, simplesmente porque a atividade que exercem é sempre (ou quase sempre) lícita. O absurdo, portanto, descredencia totalmente a tese.

Percebam alguns exemplos, colhidos da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, para reforçar, ainda mais, a impropriedade de tal construção argumentativa.
Exemplo1: Uma pessoa jurídica foi condenada a pagar indenização porque um dos defensivos agrícolas que fabrica e comercializa se mostrou ineficaz no combate à “ferrugem asiática” – ninguém certamente nega que é lícita essa atividade empresarial (fabrico e comercialização de fungicidas), mas, mesmo assim, a fornecedora foi condenada a reparar os danos que o seu produto imperfeito causou ao agricultor (REsp 1096542).
Exemplo2: Outra pessoa jurídica foi condenada a pagar indenização porque um dos veículos que fabricou e disponibilizou no mercado apresentava peça defeituosa – uma imperfeição na mangueira de alimentação de combustível –, responsável por um vazamento que deu ensejo a um incêndio – ninguém decerto negará que é lícita a atividade de fabrico e comercialização de veículos, mas tal licitude não foi empecilho para o Superior Tribunal de Justiça responsabilizar civilmente a fornecedora de veículos (REsp 575469).
Constata-se, enfim, que, em se tratando de responsabilidade pelo fato do produto não se deve buscar o ilícito na própria atividade exercida pelo fornecedor, mas, sim, no resultado dessa mesma atividade, isto é, no próprio produto que o fornecedor disponibiliza no mercado. Não fosse assim, insista-se nessa idéia, todo o sistema de responsabilização civil edificado pelo Código de Defesa do Consumidor seria absolutamente ineficaz, imprestável realmente.

Com o cigarro a situação é exatamente esta. Apesar de a atividade de fabrico e comercialização de fumígenos ser lícita, os cigarros são um produto imperfeito sob o ponto de vista jurídico, isto é, apresentam vícios, especialmente os chamados vícios de informação.

Lembre-se que o art. 12, ao qual nos referimos anteriormente, estabelece, de maneira categórica, que o fornecedor também responde, independentemente de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos. Lembre-se, ademais, que a informação foi erigida à categoria de princípio fundamental do microssistema das relações de consumo (art. 4.º, IV), integrando, ainda, o rol dos direitos basilares do consumidor (art. 6.º, III). Outra característica que lhe é inerente é a sua inevitabilidade. Não cabe, portanto, ao fornecedor decidir se deve ou não exibir instruções a respeito dos produtos que coloca no mercado; deverá, sim, apresentar, obrigatoriamente, as informações sobre a utilização do produto e seus eventuais riscos. Perceba-se, noutro turno, que o texto normativo, ao se referir à informação, é abundante em adjetivos: adequada, clara, precisa, correta, ostensiva. Tais predicados, longe de evidenciar a riqueza de linguagem do nosso legislador, têm por função indicar a preponderância de outra característica da informação: a sua socialização. Não basta, pois, apenas informar; a informação há de ser socialmente eficaz, isto é, a informação sobre a natureza, a utilização e os riscos de determinado produto deverá atingir o público ao qual ele, o produto, é destinado, de forma tal que o consumidor seja legitimamente instruído, sem engodos, sem ilusões. Ainda, o dever de informação está umbilicalmente ligado à cláusula geral da boa-fé objetiva, que permeia todo o nosso ordenamento jurídico, em especial o Código de Defesa do Consumidor – princípio este, aliás, que se encontra presente no direito brasileiro desde o Código Comercial de 1850. Sabemos todos que boa-fé é cooperação, lealdade e respeito; trata-se de um referencial objetivo de conduta que o homem médio adotaria em determinadas situações. Resguardar a boa-fé significa proteger os contratantes de artimanhas e subterfúgios.

E o cigarro é realmente um produto imperfeito juridicamente, justamente por apresentar um vício extrínseco - um vício de informação. Tal imperfeição, ressalte-se, relaciona-se à qualidade da informação veiculada pelo fornecedor, essa que, por ter sido prestada de maneira ineficiente ou inadequada, ou mesmo por sequer ter sido prestada, tem propensão de acarretar acidentes de consumo. Veja-se, em resgate ao que foi dito anteriormente, que pouco importa a licitude da atividade exercida pela empresas fabricantes de cigarros na análise do ilícito que enseja o seu dever de indenizar; afinal, a problemática da ilicitude reside no próprio produto, seja através de características intrínsecas a ele (vícios de concepção e fabricação), seja por atributos extrínsecos, que se referem ao aspecto formal do mesmo produto (vícios de informação).

Meu tempo praticamente já se exauriu e, portanto, uma abordagem ampla, que demonstre a caracterização material de tal vício de informação nos cigarros torna-se impraticável nesse momento. Basta, entretanto, afirmar que hoje se tem noção precisa desse ilícito, notadamente porque tornados públicos os famosos “documentos secretos da indústria do tabaco”,[1] os quais dizem respeito a sete empresas fumígenas e a duas organizações a elas filiadas, todas em atividade nos EUA, e que perfazem milhões de páginas que elucidam estratégias meticulosas, muitas delas ilícitas, adotadas por essas pessoas jurídicas para garantir a ascensão de vendas de seus produtos. Tais documentos, somados às estatísticas que evidenciam a ausência de um conhecimento notório por parte do consumidor brasileiro sobre a complexa natureza do cigarro e sobre os malefícios que o seu consumo acarreta à saúde, comprovam, sem dúvida, a presença do gravíssimo vício de informação. Mas o aprofundamento de tal temática fica para outra oportunidade.

Encerro dizendo que muitas das questões que envolvem a responsabilidade civil da indústria do tabaco realmente se apresentam difíceis e intrincadas. É por isso que merecem reflexão profunda, que nos obrigue a questionar nossas próprias crenças e opiniões, instigando-nos a renunciar a manutenção de uma perigosa postura conformista. Lembremos do “Mito da Caverna”, extraído da obra “A República” de Platão, uma alegoria em que o filósofo mostra a situação de pessoas aprisionadas numa caverna, que tomam sombras por realidade. Tomam por realidade uma confusão oriunda das condições adversas nas quais se encontram. Temos, portanto, que quebrar os grilhões impostos por uma meticulosa estratégia empreendida pela própria indústria do tabaco, que nos confunde e desorienta. Temos, enfim, que nos libertar da Caverna e questionar ideias preconcebidas, meras opiniões e impressões imediatas, que às vezes nos cegam àquilo que realmente interessa no tema ora explanado. Libertemo-nos, pois, do mundo das aparências que nos foi, em grande parte, imposto por milionários estratagemas publicitários financiados por fabricantes de cigarros; deixemos as sombras de lado e encaremos com profundidade e atenção as questões que realmente importam nesses processos judiciais em que o mérito centra-se no ressarcimento de cidadãos cuja saúde foi consumida (muitas vezes mortalmente) pelo tabagismo.

Agradeço a atenção de todos vocês.

Muito obrigado.





[1]Por meios desses “documentos secretos” já se constatou que a deslealdade das fabricantes de fumígenos advém, ao menos, desde a década de 50 (ou antes disso), época em que já tinham conhecimento dos malefícios que seu produto acarreta a saúde do consumidor. É que a indústria do fumo omitiu informações que detinha acerca dos malefícios do fumo à saúde, e sobre a qualidade psicotrópica da nicotina. Não bastasse, utilizou-se, no Brasil e em todo mundo, de massiva publicidade insidiosa, a fim de fazer apologia do perigoso produto que fabrica, cujos alvos eram, principalmente, crianças e adolescentes, indivíduos mais propensos a experimentarem cigarros e deles se tornarem dependentes. Valeu-se, ainda, de manobras voltadas a desacreditar estudos e dados científicos sérios, os quais jungiam o consumo de cigarros a várias enfermidades. Contratou atores cinematográficos, esportistas e outras celebridades para que divulgassem seus produtos. Essa estratégia, em que a omissão de informações é apenas uma de suas vertentes, foi edificada com o intuito de se estabelecer um ambiente propício ao fumante. A indústria do fumo, então, não apenas omitiu o que sabia, mas foi bem mais adiante, obrando esforços para garantir a instauração de uma atmosfera socialmente positiva a pairar sobre o tabagista, incutindo na mente dos consumidores controvérsias e dúvidas, literalmente desinformando-os, mediante uma prática publicitária hipócrita e sedutora.

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