Abs.
Lúcio Delfino
MMA e a ditadura das preferências morais
Em 31 de
março de 2013, a Folha de São Paulo
publicou artigo intitulado “MMA e o
glamour da violência”, escrito pelo Dr.
Jair Raso, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Neurocirurgia. A tese
advogada pelo articulista é a de que o MMA (artes marciais mistas) e também o
boxe não merecem ser considerados esportes, pois esporte é atividade
relacionada à saúde e não à doença.
Impressionou-me
o vigor utilizado na defesa do seu ponto de vista, entremeada de adjetivações e
cotejos que marcam, vivamente e de forma franca, a contrariedade que nutre ao
prestígio hoje conquistado pelas lutas de MMA e por seus mais destacados
praticantes. Mas ao final o que sobra é apenas retórica na medida em que os
argumentos eleitos, com o devido respeito, são defeituosos, logicamente
inconsistentes.
Exibe, de
início, um paralelo entre o MMA e as “rinhas de galo”, como se as duas
“modalidades” fossem semelhantes a ponto de autorizá-lo tratá-las como iguais.
A analogia é gritantemente falsa, bastando para assim concluir a percepção de
que galos são desprovidos de consciência, não deliberam, não assinam contratos,
enfim, não manifestam sua vontade como nós seres humanos o fazemos.
É por igual
inadequada a semelhança que o articulista propõe existir entre MMA (e boxe) e
“roleta russa”. Ora, os lutadores são profissionais, transformam a atividade no
seu ofício, treinam diariamente horas a fio, preparam-se física e mentalmente
para os confrontos. São de certa forma super-humanos – como o são todos e
quaisquer atletas profissionais, seja qual for a modalidade. Não entram no
octógono (ou no ringue) com o propósito de apostar
a própria vida; desejam provar a sua superioridade perante os demais
competidores, além de naturalmente lucrarem com isso. Sem contar a presença do
árbitro, cuja função também alcança a mantença da integridade física dos atletas.
Afirmar que
o MMA incita à violência é lugar-comum, ainda que não se tenha dados demonstrando
a assertiva. De minha parte, não creio plenamente na hipótese. Sobretudo se
considerarmos o nível de profissionalização hoje incutido nos atletas de
destaque internacional, que sem dúvida são prestigiados e por isso aparecem em
programas televisivos, mas não para vender violência gratuita: afora as
provocações entre adversários – algo
inerente ao espetáculo –, o lema que pregam dia a dia é a paz e o respeito ao
próximo.
Não convence,
de outro lado, o raciocínio elaborado para desqualificar o MMA e o boxe como
esportes só porque são atividades violentas e por isso podem causar danos
irreversíveis aos lutadores. Sobre o ponto, aliás, era até desnecessária a
citação dos estudos e seus resultados no artigo ora refutado: aqui o senso
comum não se equivoca; é suficiente assistir aos embates para verificar que há
mesmo nessas lutas boa dose de violência controlada
– não é por outra razão que existem regras, juízes e médicos atuando. De toda
sorte, o problema é que o argumento utilizado no artigo prova uma coisa
diferente da pretendida: a violência não é fator importante na conceituação do
que é ou não esporte, a não ser que se queira rever a etimologia da palavra.
Não há,
ademais, como atribuir crédito à sugestão que faz o articulista para que a
Declaração Universal dos Direitos Humanos incorpore em seu texto algo
semelhante ao dispositivo constante na Declaração Universal dos Direitos dos
Animais (Unesco), vale dizer, aquele que inadmite a exploração de animais para
divertimento dos homens, enfatizando uma vez mais o exemplo das rinhas de galo.
Não bastasse o argumento falacioso já anteriormente denunciado (lutas entre animais e lutas entre homens tratadas como se
iguais fossem), a ideia de um dirigismo estatal em questões desse jaez soa
absurda numa sociedade na qual a liberdade (mesmo que relativizada) é ainda um
dos seus valores fundantes, cuja proteção, e não o atropelo, cabe ao Estado
assegurar – liberdade que, de resto, é também
tutelada pela própria Declaração Universal dos Direitos Humanos.
A verdade é
que os indivíduos pensam diferentemente, são plurais em muitos sentidos, têm
aptidões e preferências variadas. As lutas marciais – MMA, boxe ou quaisquer
outras – não são estúpidas, como
tampouco o são as pessoas que as praticam ou decidem fazer delas a sua
profissão, e muito menos podem ser rotulados como tais aqueles que as apreciam.
Se o MMA é contemplado por um exército de admiradores assim ocorre não por se
traduzir na encarnação da violência bruta, mas porque seus praticantes são
mesmo artistas, dotados de habilidades (físicas, técnicas e emocionais)
especiais construídas ao longo de muito esforço, às quais lhes permitem
proporcionar genuínos shows de técnica e superação aos telespectadores – daí talvez
a origem da expressão artistas marciais.
Num ambiente
democrático não é adequado àqueles que repudiam o esporte – porque é isso que o
MMA é, na mais clara acepção da palavra – pretenderem incutir suas preferências
morais ao custo da liberdade de milhões que pensam de outro modo.
Lúcio Delfino, advogado em Minas Gerais.
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