sábado, 26 de julho de 2014

MMA e a ditadura das preferências morais

O texto foi elaborado no ano passado. Divulgo-o agora no blog!
Abs.
Lúcio Delfino


MMA e a ditadura das preferências morais


Em 31 de março de 2013, a Folha de São Paulo publicou artigo intitulado “MMA e o glamour da violência”, escrito pelo Dr. Jair Raso, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Neurocirurgia. A tese advogada pelo articulista é a de que o MMA (artes marciais mistas) e também o boxe não merecem ser considerados esportes, pois esporte é atividade relacionada à saúde e não à doença.

Impressionou-me o vigor utilizado na defesa do seu ponto de vista, entremeada de adjetivações e cotejos que marcam, vivamente e de forma franca, a contrariedade que nutre ao prestígio hoje conquistado pelas lutas de MMA e por seus mais destacados praticantes. Mas ao final o que sobra é apenas retórica na medida em que os argumentos eleitos, com o devido respeito, são defeituosos, logicamente inconsistentes.

Exibe, de início, um paralelo entre o MMA e as “rinhas de galo”, como se as duas “modalidades” fossem semelhantes a ponto de autorizá-lo tratá-las como iguais. A analogia é gritantemente falsa, bastando para assim concluir a percepção de que galos são desprovidos de consciência, não deliberam, não assinam contratos, enfim, não manifestam sua vontade como nós seres humanos o fazemos.

É por igual inadequada a semelhança que o articulista propõe existir entre MMA (e boxe) e “roleta russa”. Ora, os lutadores são profissionais, transformam a atividade no seu ofício, treinam diariamente horas a fio, preparam-se física e mentalmente para os confrontos. São de certa forma super-humanos – como o são todos e quaisquer atletas profissionais, seja qual for a modalidade. Não entram no octógono (ou no ringue) com o propósito de apostar a própria vida; desejam provar a sua superioridade perante os demais competidores, além de naturalmente lucrarem com isso. Sem contar a presença do árbitro, cuja função também alcança a mantença da integridade física dos atletas. 

Afirmar que o MMA incita à violência é lugar-comum, ainda que não se tenha dados demonstrando a assertiva. De minha parte, não creio plenamente na hipótese. Sobretudo se considerarmos o nível de profissionalização hoje incutido nos atletas de destaque internacional, que sem dúvida são prestigiados e por isso aparecem em programas televisivos, mas não para vender violência gratuita: afora as provocações entre adversários –  algo inerente ao espetáculo –, o lema que pregam dia a dia é a paz e o respeito ao próximo.

Não convence, de outro lado, o raciocínio elaborado para desqualificar o MMA e o boxe como esportes só porque são atividades violentas e por isso podem causar danos irreversíveis aos lutadores. Sobre o ponto, aliás, era até desnecessária a citação dos estudos e seus resultados no artigo ora refutado: aqui o senso comum não se equivoca; é suficiente assistir aos embates para verificar que há mesmo nessas lutas boa dose de violência controlada – não é por outra razão que existem regras, juízes e médicos atuando. De toda sorte, o problema é que o argumento utilizado no artigo prova uma coisa diferente da pretendida: a violência não é fator importante na conceituação do que é ou não esporte, a não ser que se queira rever a etimologia da palavra.

Não há, ademais, como atribuir crédito à sugestão que faz o articulista para que a Declaração Universal dos Direitos Humanos incorpore em seu texto algo semelhante ao dispositivo constante na Declaração Universal dos Direitos dos Animais (Unesco), vale dizer, aquele que inadmite a exploração de animais para divertimento dos homens, enfatizando uma vez mais o exemplo das rinhas de galo. Não bastasse o argumento falacioso já anteriormente denunciado (lutas entre animais e lutas entre homens tratadas como se iguais fossem), a ideia de um dirigismo estatal em questões desse jaez soa absurda numa sociedade na qual a liberdade (mesmo que relativizada) é ainda um dos seus valores fundantes, cuja proteção, e não o atropelo, cabe ao Estado assegurar  – liberdade que, de resto, é também tutelada pela própria Declaração Universal dos Direitos Humanos.

A verdade é que os indivíduos pensam diferentemente, são plurais em muitos sentidos, têm aptidões e preferências variadas. As lutas marciais – MMA, boxe ou quaisquer outras – não são estúpidas, como tampouco o são as pessoas que as praticam ou decidem fazer delas a sua profissão, e muito menos podem ser rotulados como tais aqueles que as apreciam. Se o MMA é contemplado por um exército de admiradores assim ocorre não por se traduzir na encarnação da violência bruta, mas porque seus praticantes são mesmo artistas, dotados de habilidades (físicas, técnicas e emocionais) especiais construídas ao longo de muito esforço, às quais lhes permitem proporcionar genuínos shows de técnica e superação aos telespectadores – daí talvez a origem da expressão artistas marciais.

Num ambiente democrático não é adequado àqueles que repudiam o esporte – porque é isso que o MMA é, na mais clara acepção da palavra – pretenderem incutir suas preferências morais ao custo da liberdade de milhões que pensam de outro modo.


Lúcio Delfino, advogado em Minas Gerais.

Nenhum comentário:

Postar um comentário