sexta-feira, 1 de agosto de 2014

O NOVO CPC CONTRA O ADVOGADO DILIGENTE

O NOVO CPC CONTRA O ADVOGADO DILIGENTE


Lúcio Delfino

Doutor em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Pós-doutorando em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Membro do Instituto Pan-Americano de Direito Processual. Membro do Instituto Ibero-Americano de Direito Processual. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual. Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros. Membro do Instituto dos Advogados de Minas Gerais. Diretor da Revista Brasileira de Direito Processual (RBDPro). Professor universitário. Advogado.


Ao que tudo indica logo mais teremos entre nós um novo CPC. E provavelmente já este ano, pois a Câmara dos Deputados concluiu a votação que lhe cabia do CPC Projetado, com aprovação de sua redação final em 26 de março, texto que agora retornou ao Senado Federal para formatação definitiva.

Na atual fase do processo legislativo a tarefa dos senadores é menos espinhosa. É que, como a proposição teve início no Senado Federal, seu regresso a essa Casa tem por finalidade unicamente a deliberação sobre as emendas sugeridas pela Câmara dos Deputados, as quais poderão ser ou não acatadas.

Há, nessas mudanças consideradas em sua generalidade, avanços de quilate, dignos de elogios; não obstante, também abrolham delas problemas, alguns nem um pouco desprezíveis, e que colocam os mais atentos em estado de alerta. Aqui o objetivo concentra-se no ataque a um deles, na intenção única de colaborar para o aperfeiçoamento da nova legislação que se avizinha, como, aliás, tem sido meu propósito desde o início.

O substitutivo ao Projeto do novo CPC, apresentado pelo senador Valter Pereira, trouxe como uma de suas inovações a inserção de uma técnica obrigando juízes e tribunais a decidiriam segundo ordem formada de acordo com a conclusão dos processos, disponibilizada em lista pelos cartórios para consulta pública (art. 12). A novidade, que gerou acalorada polêmica, não obteve força suficiente e, por isso, acabou repelida do Projeto de Lei 166/10.

Na Câmara dos Deputados a sugestão mencionada regressou a plenos pulmões, a despeito de sua impopularidade entre parlamentares e juristas: foi debatida, reformulada e aprovada, hoje encontrando-se incrustada na última versão do Projeto. E como se a técnica processual sugerida já não fosse ruim, a ela se somou, talvez na intenção de obter alguma sistematização normativa, outro dispositivo ainda mais problemático, e cujas consequências, salvo melhor juízo, prenunciam-se calamitosas.

A referência acima, que se situa na base da crítica ora elaborada, é ao art. 153 dessa versão aprovada pela Câmara, o qual infunde o dever de obediência pelo escrivão ou chefe de secretaria à ordem cronológica de recebimento para publicação e efetivação dos pronunciamentos judiciais. O que se propõe, como restará claro adiante, é um violento golpe contra o advogado diligente.

Ao rezar que as publicações e efetivações dos pronunciamentos judiciais devem respeitar a ordem cronológica de recebimento, o que pretendeu o legislador foi elaborar um arranjo formal que obtenha sucesso em organizar a burocracia interna dos cartórios judiciais e talvez promover, por pouco que seja, um caminho hábil para o combate ao represamento de processos, mas isso de modo que a impessoalidade e a isonomia sejam asseguradas, apostando-se no acaso e não numa possível escolha arbitrária feita pelos serventuários, que acabam tendo algum poder de decisão sobre aquilo que merece ou não agilidade, seja por desejo próprio, seja porque admoestados a fazê-lo por qualquer um que opere nos autos, em especial os advogados.

Nem de longe se nega as boas intenções do legislador. A questão contudo é que não se percebeu a gravidade das implicações que o dispositivo aludido, de duvidosa constitucionalidade, poderá acarretar no dia a dia do foro. Basta pensar que uma das atividades mais comuns e de longa data integrada à nossa tradição, praticada pelos advogados em diligência, preocupados com os interesses dos seus constituintes, é cobrar a atuação dos servidores responsáveis pelo cumprimento de atos processuais, como i) a publicação de despachos ou decisões; ii) a prática de citações ou intimações pessoais; iii) a lavratura e expedição de alvarás; iv) a lavratura e assinatura de termos; v) o aperfeiçoamento da penhora e a designação de hasta pública; vi) a conclusão de processos estagnados nos escaninhos; vii) a manifestação sobre proposta de honorários periciais em que o advogado, no próprio balcão da secretaria, lança seu “de acordo”; viii)  a remessa dos autos ao representante do Ministério Público; ix) audiência junto ao relator perante os tribunais para que o processo seja colocado em pauta. Não é à toa que, no meio forense, o advogado já tenha sido apelidado, com uma ponta de sarcasmo, de pedinte qualificado, tamanhas são as atribuições que exigem sua atenção contínua, às vezes, a bem da verdade, incômodo para os servidores que com ele lidam no cotidiano. 

Ninguém nega que o mundo seja imperfeito. Ele o é, em abundância, o que de fato também se aplica à realidade forense, onde a lida diária, a envolver, no final das contas, contato entre pessoas, muitas vezes exige a atuação mais próxima do profissional da advocacia — atuação essa que, não obstante invisível nas laudas dos autos, é assaz positiva exatamente por acelerar o trâmite e o fecho da atividade jurisdicional. O art. 153 representa, nessa ótica, uma ação avessa ao advogado diligente, quem, com o seu trabalho zeloso e atento, coopera e faz com que a marcha processual permaneça viva, isto é, aquele profissional que, ao perceber que um processo sob seu patrocínio encontra-se na vala comum das escrivanias, sujeito à inércia indefinida, usa do corpo a corpo para garantir que a prestação jurisdicional dê-se em tempo satisfatório.

Há, ainda, incompatibilidade entre o art. 153 e a própria principiologia que confere alicerce ao CPC Projetado. É suficiente afirmar que ali, em seu corpo normativo, fazendo eco à Constituição Federal, lê-se um artigo estabelecendo que as partes têm o direito de obter em prazo razoável a solução integral do processo, incluída naturalmente a atividade satisfativa (art. 4º). Embora desnecessário, o dispositivo é bem-vindo, encerra valor simbólico, realça o comando constitucional, dá-lhe força e elucida que os direitos fundamentais que conferem conteúdo ao devido processo legal não são promessas vazias por possuírem caráter deontológico. Mas importa aqui é o antagonismo entre “direito fundamental à duração razoável” e “dever do escrivão (ou chefe de secretaria) em obedecer à ordem cronológica de recebimento para publicação e efetivação dos pronunciamentos judiciais”.

Como já se disse, o art. 153 desdenha o papel do próprio advogado e a sua condição de agente indispensável à administração da justiça (CF/88, art. 133), mina a sua liberdade de performance em prol de um arranjo matematizado que relega ao nada a inteligência dos escrivães e chefes de secretaria em controlar e administrar o próprio meio em que exercem seu ofício. Com isso não é difícil perceber que se impedirá o advogado de quebrar a burocracia interna dos cartórios judiciais e, por meio de sua peleja habitual, provocar e conservar a marcha processual dos feitos que patrocina. Enfim, o dispositivo em comento tem plenas condições de anular um fenômeno que, observado de ponto privilegiado, é assaz benéfico: afinal, são milhares de advogados que obraram como pedintes qualificados, cujos esforços reunidos alavancam uma força invisível empenhada, com perfeição, à garantia de duração razoável do processo.

E mais que isso, e não menos grave: o art. 153 privilegia o litigante que não tem interesse em uma justiça ágil, além de sustentar uma possível comodidade que, vez ou outra, distingue a atuação de alguns servidores: a partir de agora, afora os casos nos quais a intimação se der automaticamente por meio da retirada dos autos em carga, sempre que cobrados pelos advogados operantes nos autos, terão os escrivães (ou chefes de secretaria), por dever funcional, que se apegarem ao inexorável respeito à ordem contida em lista. Dirão, com voz segura: “Veja a lista, doutor! Seu processo ainda está lá atrás, e, como o senhor bem sabe, é nosso dever aguardar o momento certo para atender ao que foi determinado pelo juiz. Não é má vontade minha. Está na lei, e não fui eu quem a criei! E não alimente esperanças de rapidez, pois vai demorar um pouquinho para o seu cliente ser atendido; olhe como está a nossa secretaria: abarrotada, sem espaço sequer para andarmos; estamos praticamente pisando sobre processos ...”

É o Estado, uma vez mais, interferindo aonde não deveria, enfiando seu longo e pontudo nariz em esfera na qual a liberdade de atuação daqueles que funcionam no processo, onde operam e sempre operaram os advogados, é de longe a melhor opção. Corre-se, por isso, o risco real de o novo CPC arruinar esse ganho em rendimento, cuja conquista se deve também ao advogado diligente, atento ao trâmite dos seus processos e preocupado em cumprir, da forma mais expedita possível, seu mandato e atender aos interesses daquele que o contratou.

Mas não fiquemos nisso. Em voo de águia, sigo reforçando os argumentos anteriores e pontuando alguns outros, que assinalam intempéries já possíveis de antever caso a opção legislativa seja mesmo a de conservar o infeliz dispositivo:

1) A atividade de boa parte dos advogados, com a publicação e vigência do novo CPC será limitada sobremaneira, em especial a daqueles que atuam e aferem seus rendimentos na qualidade de correspondentes ou apoiadores de outros advogados ou bancas de advocacia. Não se olvide, ademais, que alguns profissionais da advocacia são contratados especialmente para diligenciar em secretarias judiciais e agilizar julgamentos, sobretudo em segundo grau, mercado de trabalho que tende a diminuir bastante caso mantida a atual redação do art. 153;

2) Já se disse que o art. 153 teve talvez por motor a intenção de sistematização: pretendeu-se promover um diálogo entre ele e o citado art. 12. Contudo, falhou o legislador porque o rol de exceções, previsto no parágrafo 2o. do art. 153, ao que tudo indica taxativo, não prevê algumas hipóteses que ali deveriam figurar. Dois exemplos servirão aqui: i) não estão entre as exceções as cartas precatórias, o que leva a crer que deverão elas ser inseridas na lista geral e comum à totalidade dos casos. Imagine-se então cartas precatórias, cujo propósito se volta à oitiva de uma única testemunha, ou mesmo a citação de alguém. Ficarão elas a depender da ordem contida em lista para cumprimento e, enquanto isso, os autos principais permanecerão aprisionados no juízo deprecante; e ii) reza o art. 626 que o processo de inventário e de partilha deve ser instaurado dentro de dois meses, a contar da abertura da sucessão, ultimando-se nos doze meses subsequentes, podendo o juiz prorrogar esses prazos, de ofício ou a requerimento da parte. Nada há no rol do §2o do art. 153 sobre os processos de inventário. Não são, de regra, urgentes e tampouco incluem-se nas preferências legais. Significará isso que muito raramente um inventário será cumprido dentro de doze meses, porquanto, por imposição legal, as publicações e efetivações das decisões proferidas nos autos obrigatoriamente dependem da ordem contida na lista. Quis-se, portanto, sistematizar, mas o que se conseguiu foi criar embaraços ao ordenamento processual projetado;

3) O dispositivo em exame reza que a ordem cronológica dos pronunciamentos judiciais, recebidos na secretaria, será registrada em duas listas: a primeira destinada à generalidade dos casos, enquanto a outra reservada às exceções (atos urgentes e preferências legais). Ocorre que essa é uma racionalidade estranha às funções desempenhadas pelas serventias judicias. Não há sentido em se estabelecer uma ordem legal para o cumprimento de decisões urgentes. Noutras palavras: decisões urgentes, a envolver com frequência questões alusivas à própria saúde ou à vida das pessoas, exigem cumprimento imediato e ao mesmo tempo, sejam quantas forem e pouco importando a energia despendida para tanto. A lógica da vida é diversa da matemática que se pensou para a elaboração do art. 153 do CPC-2014;

4) Prevê o inciso I do art. 153 que os atos urgentes, assim reconhecidos pelo juiz no pronunciamento judicial a ser efetivado, não se sujeitarão à ordem prevista no caput, mas à segunda ordem, esta a envolver exatamente atos urgentes e preferências legais, como já mencionado no item anterior. Interpretado ao pé da letra, atribui-se ao juiz poder (discricionário) para que defina, segundo seu próprio talante, quais dos seus pronunciamentos são ou não urgentes. E por consequência, é ele, o juiz, quem decidirá o destino a ser dado aos seus despachos e decisões: uns serão alocados à lista de ouro, ao passo que os demais inseridos na ordem comum. Trocando em miúdos: desrespeito à democracia por uma prática judicial solipsista autorizada nas dobras da lei. Mas interessa sobretudo é refletir sobre a prática forense: não é difícil imaginar a quantidade de pedidos dirigidos aos juízes para que considerem e decidam como urgentes a efetivação de muitos pronunciamentos judiciais. Tampouco é excessivo pressagiar uma gama de mandados de segurança tendo por alvo, precisamente, o ataque às decisões sem o rótulo “urgente”. Não deve o legislador subestimar a criatividade dos advogados, que atuarão, de maneira plena e legítima, para garantir as pretensões de seus constituintes — trata-se de uma advertência que merece ser levada a sério, pois uma ação inesperada não raramente surge como resultado de estímulos originários de leis produzidas sem maiores reflexões, uma espécie de efeito rebote cujas consequências às vezes são nefastas.

Por tudo isso, e por outras considerações que decerto me escaparam, não é exagerada a afirmação de que o art. 153, oriundo da Câmara dos Deputados, pode revolucionar o âmbito forense, transformando (ou deformando?) visceralmente nosso jeito de lidar com as coisas do foro, mas infelizmente não para o lado positivo. Bem ao revés, o que se experimentará, caso vingue a sugestão, é um retrocesso social cujas sequelas logo serão percebidas: a máquina jurisdicional, submetida hoje a uma demanda que supera 90 milhões de processos em todo o Brasil, se verá diante de mais um obstáculo, agora de ordem legal, a emperrar seu funcionamento, em repulsa a outro comando constitucional, com lugar certo no próprio CPC Projetado (art. 6o), que impele obediência, por parte do Judiciário, à tão menosprezada eficiência dos serviços públicos (CF/88, art. 37).

Para a alegria de todos o processo legislativo não se concluiu. E é alvissareiro o fato de que, nesse particular, ainda há esperanças, porquanto o Senado possui plenas condições de avaliar, com a atenção exigida, as vantagens e desvantagens de se inserir no ordenamento processual o texto normativo ora criticado. E, ao menos em minhas ponderações, o melhor mesmo é extirpá-lo por completo, como também se deveria proceder, até pela prudência, com relação ao seu primo-irmão, o teimoso e valente art. 12, cuja história, tão curta, puída e cheia de mossas, já é entrecortada por tantas críticas e polêmicas.


Fonte: http://www.conjur.com.br/2014-ago-01/lucio-delfino-artigo-153-cpc-advogado-diligente